5.15.2009

O Brando Movimento do seu Leque Chinês


Singularidades de uma rapariga Loira - leitura próxima, enquanto não acabo Amor de Perdição - é uma obra de primorosa perfeição. Há que fazer referência ao PRIMOR, porque só este adjectivo consegue transcrever uma perfeição como aquela que ficou registada em película para todo o sempre nuns míseros 64 minutos.
Oliveira é dono e senhor de si e do seu cinema; disso poucos poderiam ter dúvidas; no entanto eu sou o primeiro a admitir que nem sempre a forma dos seus filmes têm alcançado a mensagem por vezes deficitária nas suas narrativas: filmes que são impecáveis, de uma arrojo na montagem e no enquadramento, caiem por vezes numa forma estranha de (auto)contemplação que se perdia dentro de si mesma, veja se o caso de Francisca (independentemente se foi ou não o filme que o projectou internacionalmente), estrondoso como paródia social dos amores e desamores, mas que não tinha ritmo e tornava-se numa experiência penosa para o espectador; claro que são filmes como Vale Abraão que merecem destaque numa filmografia imensa.
Singularidades ... é um caso particular de humor, coisa rara em Oliveira ou sub-reconhecida, sarcástico, ácido, corrosivo, perspicaz e acutilante, este é um filme que nunca perde o espectador, que o agarra desde o primeiro segundo até ao fim, que concilia a magistral inteligência na adaptação à actualidade de um conto de Eça e o comentário politico-social (sou tão pobre como os bancos diz a certa altura Macário), equilibrando o desespero (das personagens) tão comum ao nosso autor com o sua característica perversão (sempre na forma feminina).
O que é mais admirável no cinema de Oliveira é a sua perversidade - daí que Belle Toujour fosse a maravilha que era - e este filme é um dos seus exemplos mais fulgurantes. O Brando Movimento do seu Leque Chinês, frase perfeita na descrição do filme; é este leque chinês, que vai e volta, torce e retorce, em movimento perpétuo contínuo, roçando a face de rapariga loira, que olha através das plumas azuis; é este leque que impregna em cada segundo que Catarina Wallenstein aparece uma sensualidade recatada pelas cortinas da sua janela, e é entre sucessivas ondas de pano e pluma que surge uma cabeleira Loura e um olho, que nos olha, a nós espectadores, como que nos hipnotizando na sua infinita pureza e perversidade.

Quando um Leque faz um filme é porque temos uma obra-prima comandada por um génio.

Como o senhor José Oliveira do Touro Enraivecido referia, há um travelling que não existe: foi oliveira que o inventou. Nesse instante o mundo desaba e só existem uns metros de película e uma tela na nossa frente, e depois chega a arpa. Toca. O mundo volta e o filme continua, para depois vir Luis Miguel Cintra declamar Caeiro em plano afastado, tendo em primeiro um jogo de cartas, quem faz isto, quem faz cinema assim, chama-se Oliveira e nunca será igualado.
Desde o inicio no comboio, em que as personagens à boa moda 'oliveiriana' nunca se olham nos olhos e numa imensa teatralidade libertam as suas falas, completamente desconexas no meio que as rodeia - a actualidade. Actualidade a qual é feita de computadores, e barulhos de carros por janelas abertas. A não actualização das falas de Eça, mas a actualização do meio envolvente à trama conferem ao filme um delicioso contraste entre o moderno e o antigo e reveste todas as sequências de uma noção de fábula ou conto, repudiando (felizmente) noções enjoativas de novo-realismo (Gomorra e Entre les Murs). O que se vê é literatura filmada, é ficção tal e qual; acreditar depende de nós e não da verosimilhança das representações ou dos diálogos.
Filma-se ali a cidade sempre com o mesmo plano, em vários momentos do dia, não é preciso outro, porque aquele é perfeito. Lisboa é tida aqui, como Paris era em Belle Toujour, como cidade imaginária, surreal, só possível num conto, sem espaço, nem tempo.
Poucas vezes se sentiu tanta compaixão com as personagens de Oliveira, a felicidade da paixão ou a tristeza da desilusão, nunca foram tão fortes num cineasta que se pauta pela racionalidade e frieza - um final em que um comboio se afasta deixando tudo em aberto é uma raridade no soturnismo do nosso autor.
Para terminar, lembrar que o filme é todo digital (e pensar que um senhor com 100 anos filma em HD e Spielbergh ainda não consegue), de um (primor) visual, de uma economia de meios (à boa moda do cinema português) mas sem nunca cair nas facilidades de se vender ao público por questões económicas de rentabilidade.

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