11.06.2009

Imagem Escrita, Palavra Filamada - II

"Sei, todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô-lo. É um eco a sublinhar as palavras, uma ironia que nos contempla de longe, um aviso. Se alguém (em narrador em visita) rememorava a seu gosto (e já vê no papel, e em provas de página, e talvez um dia em juízos de Crítica) o final duma mulher que é de todos conhecido e que está certificado nos autos; se se apega a um punhado de notas tomadas em tempo por desfastio, e se mete agora a entrelaçá-las e a descobrir-lhes uma linha de profecia, então esse alguém necessita de pudor para encontrar o gosto exacto, a imagem exacta da mulher ausente. Necessita de discutir consigo mesmo, à medida que recorda, e assim fá-lo por respeito, pela condição de homem em face da distância e da ausência, É, considero aqui, um ofício delicado contar o tempo vencido. Pela mesma razão se, navegando na minha cama sobre um vazio de carunchos a sussurrar, eu assisto ao Engenheiro anfitrião descrevendo a mulher-pega, a mulher-codorniz ou outra qualquer e penso na senhora da lagoa- que não cabe em nenhuma dessas classificações, evidentemente- cumpre-me prestar bem o ouvido às palavras e repeti-las como uma testemunha que vai ditando ao escrivão, fiel à sua consciência e ao seu juramento. uma testemunha que procura o rigor para não macular covardemente o retrato que se reflecte nele, Tomás Manuel. E que tudo fique conforme, e que no interesse da verdade seja lido e assinado, Gafeira, tantos de tal, em viagem com o Engenheiro pelas águas da lagoa."

Primeiros dois parágrafos do vigésimo sexto capítulo (b) de "O Delfim" de José Cardoso Pires, adaptado ao cinema em 2002 por Fernando Lopes

P.S:Esta é a essência da escrita de Cardoso Pires, um comprometimento com a realidade, tão ciente de si que lhe permite incorrer na ficção.

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