A propósito de uma publicação sobre as traduções dos títulos em Portugal, o blogger Daniel autor do recentemente falecido Fim do Mundo e do recentemente criado Critica Desconstrutiva fez a participação que se segue, dando origem a uma agradável e cordial conversa sobre o tema.
Realmente, é muito curioso o critério que tanta gente usa para dizer mal das traduções do que lhe aparece à frente. Ora imagine-se que há muita gente que pensa que traduzir bem um título é apenas decalcar para outra língua cada palavrinha que aparece! Nada mais absurdo. Pergunto-me se achas então que a correcta tradução para português de "All the boys love mandy lane" seria "Todos os rapazes gostam de mandy lane"?! Ou se calhar que "Borboleta numa roda" faria muito mais sentido! Bom, "Nuvem 9" diz quase tanto para um português como o título original em alemão "Wolke 9". É claro que traduzir não tem nada que ver com palavras, mas sim com significados. Traduzir deve ser encontrar a palavra (ou a expressão) da língua para onde se traduz que melhor capta o significado daquilo que o título original quer dizer. E, se virmos as coisas por esse prisma, muitas das traduções que dizes que são más, ou atentados, parecem perfeitamente adequadas. Poucas coisas devem ser tão más como traduções literais.
Ricardo:
a questão não é de perto nem de longe se os títulos captam ou não o significado, do filme na língua em que se traduzem (claro que em Portugal se achava que Buster Keaton era o Pamplinas e por isso qualquer filme seu, como The General tem o tristíssimo título de Pamplinas- O maquinista, claro que o publico identificava o personagem, transmitia a noção de que o filme tinha comboios, mas se esse fosse o objectivo, certamente que Keaton, não teria escolhido The General para título original), da mesma forma que as pessoas não traduzem os nomes umas às outras, as obras de arte (de cinema ou não), são produto de criação, como todos nós, e foram nomeadas pelo seu criador, com certo intuito ou simples acaso, não cabe portanto ao tradutor, desligar-se desse aspecto (onde o título faz parte inerente da criação artística - será por acaso que o último filme estreado de Mozos se chama 4 copas, podia muito bem ser qualquer coisa como amores cruzados, ou o jogo do amor, mas perdia-se a essência que o título incute na própria significação da narrativa.
Eu sou contra a Tradução de títulos de uma forma generalizada (prefiro sem dúvida o título original acompanhado de um subtítulo esclarecedor).
Mas tenho que concordar que uma tradução literal é tão má como uma aleatória, só que ao menos ficamos com a sensação que houve um cuidado em não adulterar a ideia do artista, por muito prejudicial que seja, pelo menos teve boa vontade.
Sou o primeiro a admitir que nem todos os casos que apresentei são assassínios, crimes ou brutalidades, mas todos, sem excepção, são exemplos de que muito melhor se podia fazer.
Daniel:
Que um título tenha um sentido por detrás e que ele venha de quem o escolheu para passar uma determinada mensagem, tudo bem, e não contesto isso. Agora, o que é certo, é que uma boa tradução é quase nunca uma tradução literal. O que eu estou a dizer é que a tradução deve ser feita para a língua de quem recebe a obra (no nosso caso é o português) de tal maneira que se conserve a intenção do autor em dar à sua obra o título que deu. E dou-te um exemplo muito simples para perceberes porque é que acho até mesmo estúpido não traduzir um título. Imagina o "Wolke 9". É um título alemão. Ora, em Portugal não há muita gente que saiba falar alemão, pelo que manter o título original é apenas uma forma de não informar as pessoas que não sabem alemão (que são a maioria!) do que é que consta no título do autor que, supostamente, foi escolhido pelo autor para simbolizar alguma coisa. Portanto, privam-se as pessoas, numa atitude elitista, de aceder a informação relevante. Bom, quando este exemplo é alargado a filmes chineses, japoneses, checos ou etc. estás a ver o ridículo que seria manter o título original! E mais, até mesmo manter um título original que seja em inglês é uma atitude elitista porque as pessoas que não sabem inglês não vão perceber nada, e muitas delas se calhar nem têm culpa disso! O cinema, como toda a cultura, deve estar construído de tal maneira que aproxime as pessoas em vez de as afastar, e a tradução para outras línguas faz parte disso. Mais uma vez, se traduzires "Spread" para "Espalhado", "Disperso", ou "Dado", certamente não vais passar para os portugueses o que o realizador queria dizer com "Spread" (que era simplesmente a noção de que havia um gajo que se "espalhava" por todas, ou apostava em todas); mas "Playboy americano" já passa essa mensagem entre nós. E a palavra "playboy" só resulta entre os portugueses porque é nome de revista, e sobejamente conhecida, porque senão também não dava.
Ricardo:
Devo começar por referir que lhe dou toda a razão no que a Spread diz respeito, e por esse motivo, quando ler este comentário, o título em causa já não fará parte da lista.
Fico feliz por perceber a ideia de que um título é escolhido por um autor com um intuito apertado e que essa parte da criação artística não deve ser renunciada.
E concordo, como é óbvio, que títulos chineses, checos, alemães e até ingleses sejam traduzidos, (no entanto) reafirmo a minha posição do subtítulo português (acompanhante do original). Lembro por exemplo The Fountain - O Último Capítulo.
No que diz respeito ao elitismo da não-tradução, só posso retorquir da seguinte forma: se alguém escolhe os filmes que vê simplesmente pelo título que lhes é atribuído, então se calhar tudo é elitismo.
Agradeço imenso a sua participação e a saudável argumentação (que tantas vezes falta na Internet) e pedia-lhe que me autoriza-se a publicar esta pequena conversa.
Daniel :
Ricardo, claro que te autorizo a publicar esta conversa (só agora é que vi a tua resposta, desculpa-me o atraso!). Mas não me podes é tratar por "você", que é coisa que eu detesto. É sempre um gosto conversar com alguém que nos escuta, e que esteja suficientemente disponível para discutir o que for preciso. Isso só revela a inteligência que há da outra parte! Agora, só uma nota final quanto ao elitismo (que tanto abunda por esta internet, e em especial, segundo tenho visto, pelos meios cinéfilos): por muito não-elitista que eu seja, vou sempre ligar ao nome dos filmes: primeiro, porque toda a gente os trata pelo nome e é assim que são conhecidos e difundidos, depois porque existem carradas de filmes e nós temos de nos orientar por algum lado, e finalmente porque existem tantos filmes e tantos realizadores, e sendo cada realizador um universo em si mesmo, era simplesmente impossível conhecer todos o suficiente para compreender tudo o que está por detrás de cada filme. Se a isto juntarmos a falta de tempo quotidiana para nós próprios, as exigências de um emprego (quando o há!), das pessoas com quem temos relações, da família, etc., as coisas complicam-se. E, mais a mais, nem toda a gente tem tempo livre e dinheiro para poder ir ao cinema ou sentar-se calmamente em casa a ver um filme, e menos gente ainda tem cultura suficiente para perceber Fellini ou Bertolucci, ou até o Manoel de Oliveira (porque não dizê-lo de uma vez por todas?!). Ou acham muito estranho que haja tanta gente a dizer mal do Oliveira? Nada mais natural! Então se a maneira de contar uma história é completamente diferente daquilo a que as pessoas estão habituadas, o natural é que estranhem! A questão é que a culpa nem sempre é das pessoas, como tantas vezes se esforçam por apregoar. Tenho eu culpa que sejamos bombardeados com a globalização económica, uma televisão publicitária, escolas militarizadas e desemprego em massa?! É que tudo isso age sobre as pessoas, quer elas queiram quer não, e a vontade em lutar contra todas estas máquinas que são bem maiores que nós não é toda a mesma para todas as pessoas. O que é importante não esquecer é que o mundo é bem mais vasto que a nossa cómoda situação, e que há muita miséria por aí...
4 comentários:
Tenho só a acrescentar que o meu anterior blogue Fim do Mundo deu lugar a outro, este já mais bem adaptado aos tempos que agora vivemos, parece-me; chama-se Crítica Desconstrutiva, e aproveito aqui a ocasião para falar nele, já que se quer divulgado por ser sobretudo de divulgação. Dou-te ainda os parabéns por não teres esse hábito idiota de dar estrelas aos filmes, como se pudesse haver uma qualquer escala absoluta por onde os medir; o importante é o que eles nos dizem a nós, e o resto é conversa barata.
No início do blog eu dava pontuação, mas depois comecei a achar estúpido tentar tornar científica a crítica de uma obra (coisa mais subjectiva não há)
É fico feliz por não te teres ausentado da blogosfera, vou actualizar com o link do CCrítica Desconstrutiva.
Uma das coisas que me faz gostar muito das novas tecnologias interactivas é esta possibilidade de actualizar tudo momento a momento, e de poder aperfeiçoar sempre o que já estava feito, e de o adaptar aos novos contextos históricos que forem surgindo. E, já agora, obrigado pela publicidade!
A propósito de «elitismo», aspecto focado na última parte do diálogo, sinto vontade de partilhar uma dúvida que me assaltou momentaneamente há uns tempos.
É comum os filmes preferidos das elites eruditas serem globalmente desconhecidos e/ou pouco apreciados pela maioria. E, por outro lado, essa minoria esclarecida desdenha, à partida, os filmes que afectam positivamente a maioria «embrutecida». (Não estou a ser injusta, pois não? É mais ou menos assim que as coisas se vão passando?)
Ora, vivemos numa sociedade normalizada, não é? Democraticamente normalizada. Não é esquisito (contraditório) que quem «tem razão» na (crítica da) arte, em geral, e no cinema, em particular, sejam os "outliers" eruditos?
No passado, a parte mais inguénua de mim tendeu a acreditar que a arte tinha pouco a ver com a inteligência formal. Ou que, pelo menos, espelhava um lado menos racional da racionalidade humana. Seria, mais ou menos, humanamente universal. Capaz de originar diversidade de sentimentos e/ou intelectualização igualmente valorozável entre-pares.
Vejo agora que a arte (o cinema) está cercada de (inúteis?) formalidades, de lógicas esguias e complexas e pertence à minoria esclarecida que tem a certeza que conhece os seus segredos. Pergunto-me se os artistas criam para agradar a mioria ordinária ou a mioria superior? Questiono-me se será importante o tipo de pessoa que aprecia a obra? Interrogo-me se o «vosso bom gosto» tem mais valor do que o meu?
Intrinsecamente, nenhuma destas perguntas faz muito sentido. Mesmo que eu quisesse insinuar alguma coisa (que não quero), esta seria uma forma inconsequente. Na verdade,o meu discurso confuso baseia-se na vaga sensação de que uma parte de mim reconhece que a «vossa» opinião 'vale mais' do que a minha, mas finge não saber porquê.
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