9.10.2010

Construir uma personagem apenas com um gesto















 Os meses passam e eu por preguiça ou desmotivo nada escrevo, depois a minha lembrança vai-se reduzindo e só ficam um punhado de ideias soltas do filme, e claro, uma sensação de prazer ou desprazer. Madeo [o filme está no youtube em 14 pedaços] é um filme que tenho a certeza ter gostado, mas que tenho dificuldade lembrar; a linha da intriga é simples e essa ficou: um jovem, meio atolambado é acusado do assassínio de uma rapariga e a sua mãe, vendo que nem a polícia, nem o advogado fazem o que quer que seja para o provar inocente, inicia por si uma investigação. O realizador é Joon-ho Bong, aquele que faz uns anos nos tinha presenteado com The Host, um filme de criaturas que pegava em cada um dos clichés do género e desfazia-os em cenas de humor (familiar), sem numa ser aparvalhado e sem nunca perder o fio da mensagem política, sendo para além disso um dos maiores êxitos de bilheteira da Coreia do Sul.

João Lopes tem, entre outros, um tema recorrente, um certo plano de Taxi Driver em que Scorsese enquadra as mãos de De Niro a segurar uma notas, juntamente com um pequeno-almoço de galão e bolo. A observação é mais do que digna, pois o que se obtém é uma humanização de algo tão frio como é o dinheiro, lá, naquele plano, o dinheiro está intimamente ligado à sobrevivência, vive paredes meias com o dia-a-dia, torna-se quotidiano e portanto vivo; perde a frieza e ganha sentido simbólico.

 Joon-ho Bong não é nenhum Scorsese, mas faz neste filme uma aproximação pertinente ao dinheiro como entidade simbólica. Aqui já não se trata do dinheiro como quotidiano, mas sim como orgânico do indivíduo. Para que me faça entender começo pelo princípio, há uma cena no filme [cena essa que acaba por ser essencial ao desenlace - na imagem] em que, depois de ser preso o miúdo, a chuva começa, a mãe volta para casa sem o filho e para se proteger da chuva compra um chapéu(-de-chuva) a um sucateiro que passa com um carrinho cheio de velharias. A mãe estende ao homem um par de notas, mas este tira do molho apenas uma; neste gesto o indivíduo, pobre, denota toda a sua honestidade; consegue-se construir uma personagem com todas as suas singularidades apenas com um gesto, alcança-se o que de mais orgânico à naquela entidade: a honestidade.

Curiosamente (mas não por acidente) é de honestidade que trata o filme, daí que o pobre e velho sucateiro tenha que ser silenciado, porque a honestidade é uma coisa demasiado... honesta.

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