1. Abertura do filme. Um moço está deitado no alcatrão. Traça a giz um fio de branco em redor de si. O fio vai-lhe ganhando a forma do corpo estendido. Termina. Vê-mo-lo de cima, deitado, imóvel, rodeado de uma linha branca que o encapsula. Então notamos algo de estranho. A imagem que estamos presenciando é uma que estamos muito habituados a ver nas produções televisivas cujos títulos são, infalivelmente, siglas para (mais ou menos) secretas instituições governamentais de investigação policial. CSI. NCIS. Ou seja, um cadáver abandonado, descoberto, e avaliado, fotografado e cuja forma é decalcada no chão para futuras investigações. Então estala-nos o tema basilar do filme, assim numa imagem: a morte pressentida e inefável. O moço, deita-se como cadáver a ser. Como, pelo simples acto de desejar ser cadáver se aproxime mais da morte. Esta mortificação é por isso estruturante no jovem, e extrapolando, é estruturante na juventude. A melancolia própria da adolescência é assim aproximada da morte por uma imagem. Uma só. Note-se que mais à frente, esta imagem, tão forte, é pervertida quando, ele, com a namorada, se deitam em conjunto no chão e traçam uma linha em redor dos dois, dizendo de forma tão clara, que só a morte os pode aproximar.
Romance, beijo, amor, coisas bonitas.
2. Caminha em direcção à casa da namorada. Leva um ramo de flores. Bate à porta. Ninguém responde. Entra. Vê a sua amada deitada no chão desfalecida (morta?). Corre para ela. Agarra-a em desespero. Pede-lhe que acorde. Implora-lhe. Roga-lhe. Ela murmura algo. Sabe que está morrendo. Ele não aceita. Ela fecha definitivamente os olhos, largando-se da vida. Ele fala. Diz. Não consigo fazer isto. Ela abre os olhos. Diz. Mas é o que está no guião! Mas isto não presta, sempre a repetir as mesmas frases, tudo tão dramático; é ridículo. Ela leva a peito a crítica e zanga-se. Ele zanga-se e sai. Primeira rixa do casal. E pronto. Mais um momento gigante. Van Sant assume, mesmo que por meias palavras que o que estamos vendo é um filme. Mas o que é de notar é percebermos que é o argumento que provoca a separação. Literalmente. Ou seja, Van Sant assume que deseja, conscientemente seguir o cliché do Boy meets girls- Boy looses girl- Boy gets the girl back. Mas quando um cliché é assumido, esmorece e ganha frescura. [como este há um sem número de outros exemplos em que aquilo que já está mais que repisado por qualquer comédia ou drama romântico ganha aqui uma sensação de descoberta e alegria]
Haveria muito mais para dizer, mas a minha memória não é a melhor, e já vi o filme há umas semanas. Fica simplesmente a sensação de que este é um caso maior de ternura e inteligência não só na obra de Van Sant, como, principalmente, no conjunto dos filmes da década.
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