5.03.2012

Variáveis independentes (IV)


Um homem chega a casa. Tira as compras do carro. Entra e achamos estranho que a porta que dá acesso à moradia seja insonorizada. Deixa-lo. Prepara o jantar. Talvez seja comida demais para uma só pessoa. Põe a mesa. Afinal não está sozinho. São dois os pratos. Desce à cave. Abre uma porta. Do escuro sai uma criança lentamente. Timidamente. Jantam. Vêem televisão até às nove. A criança deita-se. Ele fica mais tempo, vendo o que vai dando numa televisão sempre fora de campo. Veste o pijama, lava os dentes. Serão um pai um filho. Não parecem, mas também não parecem outra coisa. Só a sinopse já havia informado que na verdade se trata de um enclaustramento de uma criança por um pedófilo. Ele cospe a pasta branca no lavatório, agarra um recipiente de de lubrificante. Desce à cave, entra e fecha à porta. 

Michael.

Quem é Michael? não sabemos. Será ele, o homem, ou ele a criança? Não lhes sabemos os nomes. Não os conhecemos de facto. Mais tarde percebemos, por um colega de trabalho, que é o homem. Continuamos a não conhece-los.

O que sabemos (quem me dá a autoridade de falar no plural? até pareço alguns críticos de jornal) é que este é sem dúvida um dos grandes filmes do ano. Tão frio que temos dificuldade em criar uma relação até com o miúdo, vitima de abusos. Nada de sentimentalismos, até parece que estamos a ver um plano fixo de duas horas de uma pedra mármore.

Mas essa questão inicial prevalece e é explorada por Markus Schleinzer, a perversão da imagem de família. Eles passeiam por um parque como pai e filho (aliás, passa por eles um homem com uma criança à beira; como eles, espero que não). Mas esta relação é estripada de qualquer emoção. É talvez isso que mais choca. Não só o homem não sente qualquer carinho pela criança que possui com rigor cronométrico (aponta com uma cruz na agenda os estupros) como esta não desenvolve nenhum estranho complexo de Estocolmo. Nada. Quando a criança adoece ele profere: merda. Não porque ela esteja mal, mas sim pelo trabalho que isso lhe vai provocar (chega mesmo a cavar uma sepultura no bosque para enterrar a criança em caso desta morrer). 
Este é outro aspecto que Schleinzer desenvolve: a rotina. Tudo parece do mesmo naquele homem. Sai. Trabalha. Volta. Janta. Viola. Dorme. Sai. Trabalha... Só interrompe essa rotina quando vai de férias para a neve e veja-se o desespero deste por não estar sobre controlo (cai dos esquis). Mais tarde, já em casa, surge-lhe uma colega em casa sem aviso; de novo o desespero, ele não tem a rédeas da situação. Talvez por isto (e não quero pensar em desculpabilizações, porque o filme nunca o faz - o padre diz que deus é misericordioso com os seus, mas isso é deus) ele abusa da criança, porque com elas ele está controlando, de novo recorda a estadia na neve, mas desta vez a cena de impotência com a empregada do bar. 

Inversamente, o realizador mantém sempre a mão em punho fechado, não há cedências. A câmara só mostra o que deve, quase sempre em plano estático, sempre uma iluminação minimal. Não há demostrações de destreza, não há enquadramentos invulgares, não há nada desses truques. O que interessa é o que se está contando, uma história que não admite elucubrações. Veleidades de esteta.

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