6.08.2012

nem ele, que morto está, podia perder um momento daqueles

Um vidro sujo. Primeiro plano de Era uma vez na Anatólia. Observamos a nojice acumulada naquele vidro, temos tempo para isso, a câmara demora-se aí, depois desfoque, vemos o interior, uns homens que conversam, tudo através do sujo do vidro, que não se vendo, sente-se. É de noite, são luzes amarelas que vão iluminando, faróis de carros, tudo é amarelo, um amarelo sujo.

Percebemos que esta estratégia não poderá ser acidental, Ceilan sabe muito bem o que está fazendo, não fosse este filme uma espécie de noir persa, em que em vez de negro temos amarelo. O objectivo é descobrir um morto, um cadáver que jaz apodrecendo algures na estepe turca, entre nada e nenhures. Um preso, algemado, vai sendo passeado pela noite, aliás, vai passeando a trupe policial pela noite, tentando lembrar-se do local do enterro. Vão pela noite, tentando iluminar o mistério, e fazem-no com faróis de carro, amarelos. Toda a primeira parte do filme se centra neste processo de iluminação, tudo se tenta iluminar (não são poucos os enquadramentos em que vemos os reflexos dos faróis a brilhar na lente da câmara), não só o crime, mas também as personagens se vão iluminando: a certa altura o comissário conta uma história, de uma mulher que desistiu de viver; todo o resto do filme vai crescendo no sentido de desmistificar essa história (ilumina-la claro). São também os locais iluminados, aqueles que favorecem as confissões - dentro um barracão (iluminado) o preso confessa o seu parentesco com o assassinado.
No entanto o que emociona é outra cena, essa também dedicada à luz: cansados de rumar pelo breu os homens são acolhidos pelo presidente de uma pequena freguesia no meio do nada, comem, bebem, descansam e conversam. Quando o gerador falha, o homem manda a sua filha servir o chá, o que nos aparece é um anjo banhado de luz, trás uma bandeja com as chávenas e um uma lanterna a petróleo, uma beleza tocante, os homens olham-na com espanto, são iluminados por ela, pela sua pureza brilhante, e depois, em puro êxtase, o morto, aquele por quem eles andam procurando, surge e bebe chá com eles, como se nem ele, que morto está, pudesse perder um momento daqueles.

Depois é dia, o primeiro plano de dia é um vidro, agora um para-brisas, limpo pela água da chuva que vai caindo, como se a sessão de chá os tivesse clarificado, purificado. Desta vez vão direitos ao morto, a partir daqui há uma clareza de movimentos, uma burocracia própria do dia e dos funcionários públicos, coisas que a noite não aceitava. Tudo é procedimental, como se o procedimento mecânico pudesse afastar de vez o mau estar da noite.

Muito acontece ainda, o filme é grande e ainda só vamos a meio. No fim o nosso protagonista, um médico que examina o cadáver, que escolhe ocultar o horror da morte do mesmo, que se entristece pela tragédia que descobre, prefere calar, esconder, absorver o mal. Olha pela janela, está limpa, mas ele não. Uma gota de sangue suja-lhe a face; afinal a noite sempre volta, cheia de escuro e luzes amarelas.

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