7.08.2012

Talvez a melhor forma de nos obrigarmos a escrever é escrever sobre a obrigação que sentimos de escrever.

Sinto-me obrigado a escrever sobre Haywire por vários motivos, primeiro porque gostei do filme, segundo porque gosto de Soderbergh, terceiro porque Haywire é um filme que, pelo trajecto que teve que percorrer, merece ser falado, quarto porque o Luís Miguel Oliveira criticou o filme por aquilo que o torna óptimo, quinto porque no artigo da CinemaScope dedicado a Soderbergh (a propósito do dossier sobre os 50 realizadores com menos de 50 anos) referia-se que não havia uma linha autoral nos seus filmes e sexto porque na conferência de imprensa da Berlinale Soderbergh revelou um pouco do seu método de trabalho, que transparece nos seus filmes, em particular neste.

 Luís Miguel Oliveira

Gabe Klinger que escreve o texto da CinemaScope diz qualquer coisa como: um realizador português disse-me 'he has no style' e depois continua afirmando que ainda está por descobrir (se alguma vez isso será feito) o que liga os projectos de Soderbergh, os seus blockbusters e o seus filmes indies.
[este texto não está disponível, mas alguns dos outros deste dossier estão aqui]

Banderas, numa vénia graxista, diz que Soderbergh é um realizador que filma como se tocasse jazz (no sentido em que tudo é feito de seguida, sem perdas de tempo, sem iluminação artificial).
Haywire foi terminado antes mesmo de Contagion, no entanto só teve distribuição mais de uma ano depois. 

Soberbergh refere que Nolan é um realizador que nunca faz reshoots, ele no entanto não se lembra de um filme seu em que isso não tenha acontecido (até em Sex, Lies and Videotapes). Acrescenta que hoje em dia, o digital permite-lhe, durante a rodagem (à noite), montar o que filmou durante o dia e assim garantir que no dia seguinte acrescenta aquilo que lhe parecer necessário. 
[A cena final de Haywire foi filmada bastante tempo depois da rodagem, já no final da montagem quando se apercebeu (uma vez que é ele também o director de fotografia e montador dos seus filmes) que a personagem de Banderas tinha uma qualidade de master mind inesperada]
Ele refere ainda que sempre foi um realizador do Plano B, que os seus projecto foram (ao longo dos anos) impossibilitados ou incapacitados, mas com o dinheiro dos outros ele não brinca e filma sempre dentro do orçamento e dentro do horário.
[aqui]

Feita a introdução passemos à coisa propriamente dita.

Soderbergh tem uma veia autoral que percorre todos os seus filmes, uma espinha dorsal, ela é: o desapego, o alheamento, o desolamento (o desprendimento nas palavras de LMO). Referi aqui e aqui este aspecto já mais do que uma vez e a propósito de Contagion comecei o texto também com um pedaço da crítica do Mourinha que acusa o filme de desafectado e indiferente. Pois bem, mais uma vez insisto na tecla, se há algo que transforma o cinema de Soderbegh em algo mais que o de um tarefeiro que cumpre prazos e dinheiros é o facto de parecer que a cada novo filme ele (o senhor Soderbergh) faz de propósito para cumprir os mínimos dessa tarefeirice. Isto é, depois de fazer o pitching ao senhores dos estúdios e se comprometer a fazer um filme de acção com espiões e traições e porrada, ele cumpre (e com cada vez menos orçamento) os mínimos desse acordo devolvendo um exercício de estilo sobre o género em causa (se Contagion era o horror e este é acção, Magic Mike parece querer chegar à comédia romântica), desfiando (esfarripando) cada plano. Lembro-me que enquanto via o filme ter tido a sensação que Soderbergh enquadrava e montava propositadamente mal, isto é, segundo os padrões actuais de Hollywood; quase que temos a sensação de que sempre que lhe perguntam onde por a câmara ele interroga-se, como é que o Nolan faria, e depois faz exactamente ao contrário.

Mas o que torna toda esta conversa em algo mais do que apenas estéril é o facto de percebermos que esse alheamento, essa sensação de frieza metódica para com os seus personagens é um acto de compaixão por elas. Soderbergh é asséptico não porque se quer manter limpo, mas sim porque quer manter o espectador limpo. Isto é, não quer que haja uma exploração emocional das agruras dos seus personagens, daí que o distanciamento seja uma opção ética. Das duas uma, ou se faz um cinema estilizado a tal ponto que é-nos indiferente uma espingardada na cara de uma bela mulher (penso no mau gosto de Drive em que essa cena de horror gore é filmada ainda para mais em câmara lenta, e sabemos que tudo é mais bonito um câmara lenta, até uma cara a desfazer-se em papa), ou então faz-se um cinema em que a envolvência emocional com a mulher nunca se forma (ou forma-se com o certos limites) e dessa forma não nos incomoda os enxertos que se lhe infligem (penso em Haywire). Mas como garante Soderbergh esse alheamento através da mise en scéne? A resposta torna-se transparente considerando duas cenas consecutivas, filmadas de formas muito opostas e portanto esclarecedoras dessa posição des-emocional.

No confronto final, ajuste de contas, McGregor sequestra o pai dela na sua casa de praia, trás o Tatum como ajudante e mais um capanga. Ela corta a corrente electrica, obrigando tudo a uma escuridão quase total, que transforma a invasão da casa num bailado de pancadaria quase impercetível. Sabemos que a relação dela com Tatum é complicada (depois de irem para a cama ela partiu-lhe o braço), mas é a coisa mais próxima de algo romântico neste filme. Pois bem, McGregor que é um malvado dá-lhe um tiro, ao Tatum, e aqui é que está a questão, ele foge e ela fica com o alvejado. Não há cá pietás e coisas dessas trágicas do 'I'm soo cold', nada disso, Tatum vai-se esvaindo num total breu, quase não lhe vemos a cara, a dela está toda pintada de graxa [na imagem]. Depois ela vai atrás do McGregor e a cena é na praia, ao por do sol, planos curtíssimos, uma chapada de luz [na imagem]. A questão é mesmo essa, a iluminação como mecanismo de protecção, aquele que merecia carinho é escondido, no breu, o vilão por ser lado não merece tal tratamento.

E agora devia acabar isto com uma frase simpática e seca, mas isto não é bem o que devia ser. Lembro só que a primeira palavra dita no filme é merda e a última também é merda, quase como se Soderbergh estivesse a dizer, a merda fica do lado de fora. 

1 comentário:

O Provedor disse...

É daqueles realizadores que não me aquece nem me arrefece. Sex, Lies and Videotape e pouco mais. Mas gostei de ler o teu texto ;)

Cumprimentos