Quando me dirigi à página do cinema 2000 para ver o ficheiro do filme, descubro algo curioso, dois dos críticos que eu mais prezo tinham opiniões completamente diferentes (um deu 5 estrelas e o outro uma bola preta) coisa que não é assim tão rara (The Million Dollar Hotel era um caso e há outros).
Ora leiam:
Eurico de Barros (euricob@mrnet.pt) | ||
O desmancha-prazeres do costume lança umas achas para atiçar a fogueira da polémica/debate: «A Força do Amor» é um filme que utiliza alguns dos mais poderosos argumentos do cinema - actores famosos em personagens irradiantes de qualidades como a simpatia e a determinação (e que, nem por acaso, são tão pré-fabricadas quanto os seus defeitos), um argumento «humanista» defendendo um «boa» e instantaneamente comovente causa, uma realização habilíssima e uma banda sonora - canções dos Beatles - quase impossível de resistir e cozida à narrativa, para contrariar o mais elementar bom-senso e tentar convencer-nos do impossível. Que um homem com a idade mental de uma criança de sete anos tem a capacidade de cuidar de uma filha que dentro em pouco o deixará irremediavelmente para trás em todos os aspectos - que «o amor» tudo conquista, numa frase. «A Força do Amor» é um filme que defende a sua causa da forma mais apelativa e elaborada possível, mas trata-se de uma causa delicada - e perdida. Na vida real, deixar Lucy ficar com o pai seria pô-la em perigo de morte. Por isso, «A Força do Amor» é cinematograficamente demagógico, emocionalmente calculista e, sobretudo, e mais importante, socialmente irresponsável. A razão «emocional», «irrealista» do filme pode estar com os seus heróis, mas a razão «real», pés-na-terra, está inteirinha com os seus pretensos «vilões». Às vezes, o cinema pode ser o pior professor para nos dar lições sobre a vida. «A Força do Amor» contempla ainda outra ideia característica de certo cinema de Hollywood - mas que também atinge o europeu, recordemos «O Oitavo Dia», do belga Jaco van Dormael - e a que eu chamaria de idealização dos simples de espírito. Isto é, que a doença mental é uma espécie de «iluminação» que transforma aqueles que dela sofrem em detentores das verdades «essenciais» da vida, em sábios «inocentes» com os quais há muito a aprender - ver como a personagem de Penn aconselha a de Pfeiffer a «encontrar-se» a si mesma, a tentar arrumar a vida e lidar com o filho. É uma simplificação simpática, mas que corresponde a uma visão profundamente piedosa, falsa e paternalista da diminuição mental. Para não dizer ofensiva. Neste, como nos restantes aspectos, «A Força do Amor» bate recordes de politicamente correcto. |
João Lopes (joaol@mrnet.pt) | ||
Há filmes que tocam na mais pura irredutibilidade do amor — este «I Am Sam» é um desses filmes: através da história de Sam (Sean Penn, genial), um adulto com idade mental de 7 anos, deparamos com um labirinto de relações em que o amor-como-entrega e o amor-como-renúncia coexistem de forma perturbante. (Daí a inadequação do título português: poder-se-á dizer que «I Am Sam» é um filme que tem crença no amor, mas é também, é mesmo sobretudo, um filme sobre a vulnerabilidade do amor.) É um filme que pertence à mais nobre tradição do melodrama de Hollywood, e tanto mais quanto trabalha essa tradição, não de forma copista, mas reinventando-a com invulgar brilhantismo. Primeiras impressões: - a banda sonora reune uma série de canções dos Beatles, reinterpretadas por um elenco de luxo (Eddie Vedder, Rufus Wainwright, Sheryl Crowe, etc.), uma vez que Sam tem na música do quarteto de Liverpool uma referência fundamental para a sua existência: é essa música que confere ao seu mundo um princípio de unidade e coerência. - a relação de paternidade surge encenada de forma surpreendente, uma vez que, devido a um namoro puramente acidental, Sam tem uma filha, Lucy (a luminosa Dakota Fanning); trata-se de saber, através do confronto com as outras personagens e os tribunais, se Sam pode assumir Lucy a seu cargo, ou seja, trata-se de encenar as dramáticas insuficiências do amor — «I Am Sam» é um filme optimista (why not?), mas é também o contrário de um filme romântico. - Michelle Pfeiffer é, há muitos anos, uma das mais radiosas actrizes do cinema americano: a sua composição da advogada carreirista que, a contragosto, toma a seu cargo o caso de Sam, é um prodígio de composição, uma arte subtil de revelar a transfiguração afectiva de uma mulher — pertimam-me, por isso, um pequeno desabafo: não tenho dos Oscars uma perspectiva «justiceira», mas não será deslocado dizer que muito boa gente (cujo talento não está em causa) já ganhou estatuetas douradas por fazer infinitamente menos do que Pfeiffer faz neste filme. - Marshall Herskowitz e Edward Zwick, produtores de «Traffic», de Steven Soderbergh, são também os produtores de «I Am Sam»; além do mais, eles coproduziram séries televisivas como «thirtysomething» e «Once and Again» onde, além de já terem trabalhado com a realizadora Jessie Nelson, favoreceram a experimentação de novos modelos de narrativa e, em particular, de organização do espaço/tempo — na sua fulgurante alegria formal, na sua colagem sensual à pele dos actores, «I Am Sam» é também um objecto devedor dessas experiências, a provar que a contaminação cinema-televisão-cinema pode ser um processo mutuamente enriquecedor. |
Antes mesmo de ler o caso acima descrito e enquanto pensava o filme, disse para mim: um filme lindíssimo, apesar de amaneirado e manipulador, mas o que é que isso é, comparado com a força do amor.
Não é que fui bater mesmo no meio.
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