7.25.2009

O Teatro do Quotidiano


Eram os anos 70, ciclo da cinemateca, vem passando filmes desde Chinatown até A Morte em Veneza, passando por Tout va Bien e também por Daguerreotypes, este último, filme da senhora da Nouvel Vague, Agnés Varda. Por golpe de sorte ou simplesmente (e mais provável) mestria na programação, a exibição do filme foi feita exactamente na véspera da estreia do novo filme de Varda nas salas (Las Plages de Agnés, do qual já aqui apresentei o belíssimo cartaz). Como se pode ler esta semana no Ípsilon, esta imperadora do cinema d’autor tem para além da sua faceta (inicial) como criadora de experimentações ficcionais, uma longa e idolatrável carreira na área documental do cinema, da qual, Daguerreatypes se destaca (não esquecendo que a realizadora recebeu um novo empurrão, faz 9 anos, aquando de Os Respingadores e a Respingadora, que lhe restituiu o estatuto de figura maior na cinematografia mundial).

Esta obra ‘documental’ sobre os comerciantes que trabalham na rua onde Agnés vivia (rua Daguerre) é isso mesmo, um ‘documentário’ com aspas. Filme verdadeiramente pessoal (como grande parte da obra desta senhora) que se delicia (e a nós também) admirando as pessoas por si e pelas suas formas de lidar com a câmara. Cria-se uma estranha forma de realidade ficcional, de um certo pousar; ou mesmo a posição inibitória do filmado para com quem filma e daí surge o dito teatro do quotidiano. Representa-se a naturalidade! do mesmo modo que se representam na vida as relações interpessoais.

Cheio de um genuíno gosto pelo desconhecido, a curiosidade de Agnés por cada um dos seus vizinhos cria uma terna criação social, até certo ponto com laivos de sociedade (trabalhadora) perfeita, em que tudo funciona na perfeição, mas onda cada um mantém a sua identidade única e irrepetível, sem nunca sequer se pensar em estereotipar quem quer que seja pela sua origem, educação ou anseios para o futuro.

Mas mais do que tudo, o filme (e quem o fez, suponho) acredita na dedicação para com a rotina, o hábito, o quotidiano; chega mesmo a injecta-lo de uma certa dose de magia e ilusionismo, montando a transformação de água em vinho por um mágico, a par da transformação do massa em pão pelo padeiro; ou o número em que a assistente do mágico fica sem cabeça, a par dos conselhos do instrutor de condução, que avisa os educandos para não perderem a cabeça no exame. Há um olhar quase infantil por detrás daquela câmara, que encara cada objecto, cada acção ou pessoa como se fosse a primeira vez e última, há ali, naquela película, que pouco mais tem que 80 minutos, um desejo de descobrir as coisas e conservá-las para sempre, com a sua pureza e a candura naturais.

E claro, com todo este descrever minucioso dos outros e das coisas, Varda acaba por se descrever tanto a si como ao seu cinema e eu agradeço gentilmente tê-lo feito tão bem.

2 comentários:

Álvaro Martins disse...

É uma das grandes cineastas que me envergonho de não conhecer o seu trabalho. Há uns anos (6 ou 7) vi um filme dela na rtp2 e gostei bastante, mas nunca mais tive oportunidade de ver outro filme seu.

Ricardo-eu disse...

é uma pena, mas eu devo confessar que não conheço nem de perto, nem de longe a obra desta senhora com rigor.
Há que aproveitar as salas (não sei se deva utilizar o plural)portuguesas estarem a exibir o seu último filme, e usar isso como desculpa para a retrospectiva pessoal.