12.04.2010

A mitologia amorosa de um casal, o cinema como a arte do contínuo, a importância dos ciprestes na arte, a influência do enquadramento na dinâmica conjugal, a utopia babélica e aquela coisa que por vezes se chama alma

A mitologia amorosa de um casal (1), o cinema como a arte do contínuo (2), a importância dos ciprestes na arte (3), a influência do enquadramento na dinâmica conjugal (4), a utopia babélica (5) e aquela coisa que por vezes se chama alma (6).

(1) Kiarostami constrói um casal do nada, como qualquer outro ficcionista, só que, ao contrário de qualquer outro ficcionista este admite a falsidade da sua criação, conferindo por isso uma certa coerência ao casal, tornando-o, por mais estranho que pareça, em algo mais natural. A forma como dois desconhecidos, em poucos segundos, passam a ter 15 anos de relacionamento é de tal forma inesperada que o resultado podia ser risível (e é-o em vários momentos, mas por outros motivos), mas Kiarostami monta a filigrana de uma relação com toques de relojoeiro, infectando o casal de passado, de memórias comuns, cria um mitologia relacional e isso é profundamente belo.

(2) Kiarostami faz um filme em tempo real (ou quase), as pessoas entram e saem de museus, cafés, hotéis e carros. Ele faz os seus habituais travelings de carro, escreve diálogos leves e pesados sobre as complicações do matrimónio e sobre a importância da cópia na produção artística. Tudo em cadeia, como se fosse fácil e óbvio brindar-nos com discussões tão dispares e cativantes. Mais do que uma viagem a Itália, este filme é um passeio com óptima companhia.

(3) Uma das teses do filme (só lembrar a cena inicial em que a mãe discute à distância com o filho em plena palestra, dando-nos a entender que a arte de que se está a falar neste filme é muito menos aquela das galerias e muito mais aquela de viver feliz e em harmonia com os outros) é que são as pessoas e as coisas mais simples que são as mais belas e tocantes. Mas que, por serem simples, ninguém lhes dá valor (e que pelo simples facto de lhes darmos valor e admitirmos a sua beleza, elas perdem valor e beleza). Como os ciprestes, que são antigos (como 'deve' ser a arte) e belos (como 'deve' ser a arte), mas não passam de árvores que nos dão a sombra do caminho.

(4) Existem dois aspectos importantes nesta secção. Primeiro; várias vezes ao longo do filme, espelhos são usados como forma de apimentar a mise en scène, mas na verdade existe um conteúdo fortíssimo nesses enquadramentos, sempre que isso acontece, a câmara mantêm o homem em primeiro plano e é a mulher que se afasta, vê-mo-la através de um espelho retrovisor de uma mota ou no reflexo de um vidro, nessas cenas a mulher afasta-se para conviver com outros (perguntar às pessoas a sua opinião sobre uma estátua, ou tirar uma fotografia a estranhos), enquanto que o homem fica para trás, sempre em primeiro plano; o homem como bicho-do-mato e a mulher como animal-social. Segundo (por sugestão de Luís Mendonça); a partir do plano do espelho na casa de banho, a dinâmica dos personagens muda, porque daí em diante são quase só contra-planos de 180º, como se criasse uma parede entre o casal, coisa que se desfaz com o regressar do mesmo plano no final do filme.

(5) De forma semelhante ao Inglourious Basterds, esta é uma Europa de várias línguas, em que se passa de francês para italiano e daí para o inglês como se não houvesse diferença. A Europa como utopia social, mais uma vez: a arte de viver em harmonia. Recordo a história bíblica de Babel: os homem queriam chegar ao céu construindo uma torre, para evitar isto, deus deu-lhes linguagens diferentes para que não pudessem trabalhar em conjunto, criando os conflitos entre os homens, que até então viviam em paz. O que Kiarostami idealiza é um mundo sem conflitos de civilização ou cultura. [um mundo só com conflitos conjugais]

(6) Binoche, e chega.

3 comentários:

Flávio Gonçalves disse...

Sem dúvida, sem dúvida! :)

Ricardo-eu disse...

eu gosto de Kiarostami e admito-lhe muitas maravilhas, com um filme deste só não o faria quem fosse parvo, no entanto é um realizador que me irrita consistentemente. Acho Shirin um horror de pretensiosismo e o sabor da cereja um filme que, de tão vago, pode ser olhado por qualquer ângulo (mas apesar de tudo admito-lhe a inteligência e audácia da construção). Claro que adoro o através das Oliveiras, mas isso já foi há muito.
Enfim, não creio que seja o maior cineasta vivo (talvez Resnais), mas isto são gostos. Agora, Copie conforme é sem dúvida um dos melhores dos últimos anos.

Anónimo disse...

Gostei muitíssimo do post, Ricardo!

Rita