O ermitismo (suponho que seja o acto de ser ermita) é coisa cobiçada e de grande apreciação, basta lembrar o Black Narcissus para perceber que o velho ermita tem oferendas todos os dias, comida regular e apreço da população local. Tem só uma desvantagem: deixar-se ficar, imóvel, durante horas e dias em meditação contínua e sonolenta.
O bom cinéfilo, aquele que com elegância constrói as pontadas mais letais para aplicar na próxima crítica, será um indivíduo que se deixará levar por essa saída fácil que é a vida solitária, desgarrada dos outros e de si mesmo, alimentando-se de refeições leves e película (ao contrário dos comunistas, as dietas à base de natimorti são com certeza indigesta), sendo que esta última terá que ser cozinhada pelo tempo em especiarias exóticas, de preferência soviéticas ou latino-americanas. Claro que o cine-ermita é ser de mau trato e ocasionais boutades afiadas, que lança um esgar ao mendigo e vendedor de produtos financeiros e/ou de telemóveis e afins apetrechos; mas é também um animal educado, fumador, bebedor, leitor ávido de textos de leste com obscuras traduções em francês feitas a partir da versão hebraica, consome café com cheirinho e queques de cenoura e cobertura de queijo mascarpone. Tanto aprecia a mulher como o homem (sexualmente, entenda-se; i.e. depende da profundidade dos óculos) e com os seus maneirismos, voz colocada e frases espirituosas conquista a sua presa de forma custosa. As relações são curtas porque os tratos são secos e embrutecidos pelos filmes de verão ou ocasionais comédias românticas e/ou filmes de horror a que o cine-ermita se vê obrigado a frequentar pelos deveres da relação e necessidade de contacto.
Uma vida só, idas sós ao cinema, ansiando que a sala esteja vazia; coisa que o conforta: saber que mais ninguém na sua cidade (sim, o bicho é de cidade) teve a ideia de ir ver tão rara película em tão infecta sala de exibição. Talvez um encontro, mais ou menos satisfatório, na casa-de-banho do cinema? (Good Bye, Dragon Inn)
P.S.: é tarde quando escrevo isto (já madrugada), era suposto fazer um comentário ao facto de ter ido ver os dois documentários portugueses em corrente exibição nas salas e das duas vezes ter sido o único espectador, só que as palavras foram saindo, resultado de vários meses de aprisionamento por testes e exames impraticáveis. o texto não ofende ninguém por ninguém ter sido usado como inspiração. raramente escrevo amargamente, este momento é simplesmente um interstício de texto, uma pausa na partitura, enfim, uma bebida para tirar o sabor do caril.
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