É o olhar a mais poderosa das ferramentas divinas. Pela sua omnipresença e pela posição inoperante, a forma mais contundente de impelir a bondade é o facto de o crente temer o juízo do criador (pai?) e saber, de antemão, que nada do que faça passará despercebido; os olhos do senhor tudo vêem.
É pois o olhar um dos temas deste filme. Por olhar aquilo que era um momento de ternura, o voyeurista fica sem motorizada. Isto porque o que é privado só a deus pertence. Há que castigar aqueles que tentam espreitar no domínio do senhor. Mais tarde a nossa menina abandona a meio uma aula de teologia porque o colega do lado a olhava incessantemente. Mais uma vez, a moça não podia admitir que alguém, que não o seu amado, a olhasse daquela forma. Ela está enamorada por deus e só a ele ela se quer mostrar. A mais ninguém.
Mas este não é um filme religioso, é sim um filme sobre o amor, na sua vertente mais lata e mais pura.
Ela. A aspirante a freira, está amantizada com o divino. Dá-lhe o corpo, pela sacrifício: não comendo, não se agasalhando. Dá-lhe a alma rezando extensivamente (é aliás assim que primeiro a conhecemos). No entanto não recebe resposta do seu amor. Como se numa relação à distância, as cartas só circulassem num sentido.
A paixão provoca alheamento, e pelo alheamento ela vai-se desligando do mundo.
Há um moço que que por ela se apaixona. Claro que um miúdo nunca poderá competir com um senhor. Na cegueira do amor, a nossa menina encantada, quer dar ar de sua graça; quer ser vista. Quer impressionar o seu amado, fazendo por ele o seu trabalho. Quer mostrar-se capaz e digna.
Claro que esta atitude só a desliga mais ainda do mundo. Claro que o objecto do seu desejo não será alcançado pelo atiçamento. Tomando consciência disso, ela desiste. Dele e de si.
Mas deus não desiste dela (não podia) e lança-lhe a sua mão. Literalmente. Desce-lhe um enviado. Um homem. Nada de profetas ou anjos assexuados. Aquele é um homem. Sujo e semi-nú. Que trabalha com as mãos e a ama da mesma forma como sente fome ou respira. E aquele abraço não é já a ligação entre os dois; porque já não há dois. Veja-se que o plano-contra-plano que enquadra cada uma das caras aponta sempre para aquela nova figura; um corpo só.
Amor assim, tão puro, só nos filmes assim, tão puros.
5 comentários:
Parabéns pelo texto, gostei muito :)
já agora qual é o filme??
ups. Eu tinha escrito um texto maior e nesse eu indicava o nome, mas depois decidi cortar essa parte.
Chama-se Hadewijch e é o último filme de Bruno Dumont a estrear por terra lusas.
Muito Obrigado Álvaro.
Não estava a pensar vê-lo mas deixaste-me com vontade. Abraço
vê que vale muito a pena.
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