A propósito disto que o Carlos Natálio escreveu no Ordet, lembrei-me disto (e aproveito para iniciar uma nova rubrica):
Depois do jantar, tu e a tua irmã apanham o o autocarro 104, que, passando pela Broadway, vos leva até ao New Yorker Theater, e entram no oásis de frescura desse espaço escuro para verem um filme de Carl Dreyer de 1955, Ordet. Normalmente, não sentirias o menor interesse por um filme que gira me torno do cristianismo e de questões de fé religiosa, mas a realização de Dreyer é tão precisa e incisiva, tão exacta e penetrante, que depressa te arrasta e te leva a mergulhar de cabeça na história, a qual começa por te fazer pensar numa peça musical, como se o filme fosse a tradução visual de uma invenção de Bach em duas partes. A estética do luteranismo, sussurras tu ao ouvido de Gwyn a certa altura, mas, mas como ele não está a par dos pensamentos que conduziram a tal frase, não faz a menor ideia do que é que tu queres dizer e reage ao teu comentário com um sobreolho franzido de confusão.
Consideras que é quase desnecessário reviver as peripécias da história. Por muito sedutoras que elas possam ser, acabam por se resumir a uma única história no meio de uma infinidade de histórias, a um filme no meio de um sem-número de filmes, e, se não fosse o fim, Ordet não te teria afectado mais do que qualquer outro bom filme que viste ao longo dos teus anos de vida. É o fim que conta, pois o fim provoca em ti algo que é absolutamente inesperado, pois o fim abate-se sobre ti com a força de um machado derrubando um carvalho.
(...)
O cinema está quase cheio e metade do público desata a rir quando vê esta miraculosa ressurreição. Tu não os censuras pelo seu cepticismo, mas, para ti, trata-se de um momento transcendente, e dás por ti agarrado ao braço da tua irmã, enquanto as lágrimas te correm pelas faces. Aquilo que não pode acontecer aconteceu, e tu sentes-te abismado com o que acabas de testemunhar.
Há qualquer coisa que muda em ti depois disso. Não sabes o que é, mas as lágrimas que derramaste quando viste a ressurreição daquela mulher parecem ter levado algum do veneno que tem vindo a acumular-se dentro de ti.
Depois do jantar, tu e a tua irmã apanham o o autocarro 104, que, passando pela Broadway, vos leva até ao New Yorker Theater, e entram no oásis de frescura desse espaço escuro para verem um filme de Carl Dreyer de 1955, Ordet. Normalmente, não sentirias o menor interesse por um filme que gira me torno do cristianismo e de questões de fé religiosa, mas a realização de Dreyer é tão precisa e incisiva, tão exacta e penetrante, que depressa te arrasta e te leva a mergulhar de cabeça na história, a qual começa por te fazer pensar numa peça musical, como se o filme fosse a tradução visual de uma invenção de Bach em duas partes. A estética do luteranismo, sussurras tu ao ouvido de Gwyn a certa altura, mas, mas como ele não está a par dos pensamentos que conduziram a tal frase, não faz a menor ideia do que é que tu queres dizer e reage ao teu comentário com um sobreolho franzido de confusão.
Consideras que é quase desnecessário reviver as peripécias da história. Por muito sedutoras que elas possam ser, acabam por se resumir a uma única história no meio de uma infinidade de histórias, a um filme no meio de um sem-número de filmes, e, se não fosse o fim, Ordet não te teria afectado mais do que qualquer outro bom filme que viste ao longo dos teus anos de vida. É o fim que conta, pois o fim provoca em ti algo que é absolutamente inesperado, pois o fim abate-se sobre ti com a força de um machado derrubando um carvalho.
(...)
O cinema está quase cheio e metade do público desata a rir quando vê esta miraculosa ressurreição. Tu não os censuras pelo seu cepticismo, mas, para ti, trata-se de um momento transcendente, e dás por ti agarrado ao braço da tua irmã, enquanto as lágrimas te correm pelas faces. Aquilo que não pode acontecer aconteceu, e tu sentes-te abismado com o que acabas de testemunhar.
Há qualquer coisa que muda em ti depois disso. Não sabes o que é, mas as lágrimas que derramaste quando viste a ressurreição daquela mulher parecem ter levado algum do veneno que tem vindo a acumular-se dentro de ti.
Paul Auster em Invisível com tradução de José Vieira Lima
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