4.29.2012

Variáveis independentes (II)

A sala escurece. As pessoas terminam as suas conversas e faz-se silêncio. Bang. O ecrã fica de repente num branco agressivamente brilhante. Vão aparecendo os créditos de abertura. O branco vai perdendo a energia. Vai passando ao cinzento, no final, quando aparece o nome do Ferrara já é tudo negro, só as letras sobrevivem a branco. Percebemos logo ali o sentido (ferrariano?) de decadência, de descida ao negro que o filme vai tomar. Mas nada disso nos prepara para o que está prestes a começar.

Agora, depois de ver o filme a pergunta impõe-se-me: como encenar o fim do mundo de outra forma que não a partir de um apartamento em Nova York? Não contam as pessegadas explosivas de Emmerich e assemelhados, nem o nojo arrítmico do último Von Trier. Ainda para mais quando o fim do mundo é simplesmente um pretexto de Ferrara para chegar a algo tão concreto no nosso mundo de bits e bites que é a fisicalidade do outro. 


O filme começa: temos duas televisão a noticiar o fim do mundo, um tablet a dar concelhos budistas, um telemóvel a dar resposta à conversa de Dafoe lhe lança, um computador servir de comunicador com os que vivem longe, e um casal que partilha um T0 com vista para a cidade. Tudo funciona em simultâneo, os sons (ruídos?) dos electrodomésticos tipo gadjet são qualquer coisa de infernal (quase pior que o que se sabe estar a caminho). Uns por cima dos outros, sempre a tagarelarem. Al Gore, Dalai Lama, Mandela, jornalista anónimo, vendedor da banha da cobra religiosa, enfim, tudo pau pau pau. Um chinfrim. No meio disto os casal abraça-se e beija-se. Que belo beijo. Ferrara faz fade sobre a própria cena do beijo três vezes, conferindo àqueles que ali estão uma natureza incorpórea, eles existem num limbo (vide cena final: "somos anjos"). E começa ali uma sequência demorada de marmelanço. aliás, lindo umbigo. Quando o mundo está prestes a terminar esta gente, para além de estar serena, anda a pinar como se não houvesse amanhã (pois, se calhar é por isso mesmo). 

Mas isto não é acessório, percebemos que este gosto pelo corpo do outro, pelo sentir a pele do outro contra a nossa é aquilo que Ferrara quer focar. Daí toda a parafernália tecnológica que só serve para nos manter afastados uns dos outros. A esse propósito Ferrara tem um brilhante movimento de câmara: Dafoe conversa com a sua filha através do portátil, vemo-los frente a frente, quase parece que estão os dois ali, só que a câmara escorrega, lentamente para trás e toma-mo-nos conta da finura do ecrã, Ferrara a dizer, não há nenhum corpo por de trás do ecrã, a presença dos outros é só ilusória.


A certa altura uma senhora velhinha (a mãe da moça) vem dizer (através do skype) que hoje em dia já nem a deixam fumar [no final um homem diz-nos: vou fumar um cigarro e depois posso morrer], é só censuras, mas pior que isso é a trampa dos computadores (tradução livre). Ferrara é essa velhinha, renega a descorporalização (que palavra tonta) das relações provocada pelo digital, oferecendo-nos uma belíssima fotografia digital e efeitos (rudimentares) do mesmo género. Ferrara vive nesse dilema, por um lado as vantagens óbvias da tecnologia (vide a cena do moço de recados vietnamita), por outro a sensação que nos estamos afastando um dos outros.

No fim, o que os dois protagonistas querem fazer é simplesmente estar abraçados, porque quando a televisão já não recebe sinal e a eletricidade não existe, o que nos resta é sentir-mo-nos amados. [e voltamos ao branco]

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