5.26.2012

Com a boca suja de vermelho, sorri

Rita Azevedo Gomes parece ter querido fazer um filme sobre recusa da montagem como recurso de progressão narrativa. A vingança de uma mulher é um filme que vive de dois pilares fortíssimos: esta intenção aglutinadora da realizador e o trabalho (sobre-humano?) de Rita Durão, coisa tão extraordinariamente explosiva que mais do que elevar o filme a esferas cada vez mais longínquas carrega toda a obra, qual espinha dorsal. O filme é, fundamentalemte, o monólogo de Rita Durão, tem partes antes e parte depois, mas é esse momento que importa (e todos o sabem), é aquele cataclismo emocional contado entre os veludos vermelhos de um quarto que interessa. É o horror que aquela mulher conta que conta.

A senhora Azevedo Gomes faz então o mais difícil, filma uma actriz em estado de graça, apercebendo-se do milagre que lhe vai passando na frente da câmara, mas sem que com isso se intimide de filmar com proporcional encanto e destreza. Tomamos como exemplo os momentos mais emblemáticos, esse prodígio técnico: durante o monólogo há momentos em que a história recua, conhecemos o passado pelo mecanismo do flashback, mas o que Rita Azevedo Gomes encena é um processo profundamente teatral (e não será por acaso que o filme é inteiramente de estúdio e no início os actores e o ponto se estejam preparando para o que aí vem, eles sabem o que aí vem...), em vez de o câmbio temporal ser resultado de um processo de montagem, resulta aqui através de um movimento de câmara associado a uma alteração na iluminação, isto é, Rita Durão leva-nos ao passado comandados pela sua voz e Rita acompanha-a, literalmente, ao passado - que é outra zona do cenário. Esta opção não é meramente técnica, há aqui uma intenção propositada de injectar teatralidade no própria natureza dos processos cinematográficos. E não se pense que ela recusa o corte, usa-o, amiúde, mas por razões de mudança da escala dos enquadramentos, nunca como progressão narrativa.

Mas fora estas coisas, que provavelmente só me encantam a mim, há um momento de brutal candura, mostrando que por de trás de um dispositivo tão bem oleado é capaz de viver (ainda) a pureza de um cinema límpido. Esse momento dá-se na aparição (é essa a palavra, porque se trata de um anjo) de uma criança, é ele o próprio filho da realizadora, que oferece um ramo de frutos silvestres ao nosso protagonista, o homem que está destroçado (rebentado) pela história que acabou de ouvir (o tal monólogo). Numa rua, à noite, um homem morto por dentro vaguei e uma criança, vinda do além, oferece-lhe sustento, mas fá-lo numa graça impossível, com a boca suja de vermelho, sorri.

Depois, há morte, há Mozos, há um cenário que se perde, um porta que se abre, uma luz que entra, porque lá fora há vida, aqui dentro, ali dentro, só há morte; e um anjo. 

  

Sem comentários: