5.22.2012

o primeiro foi o derradeiro; o segundo, o terceiro


Tabu é o último filme de Murnau, é também o último filme de Miguel Gomes, no caso do primeiro foi o derradeiro, do segundo, o terceiro. O filme de Gomes era para se chamar Aurora, o nome da nossa protagonista, e o nome do gigante filme de Murnau, mas decidiram mudar. Aurora, o de Murnau, foi o seu primeiro filme sonoro, embora Murnau nunca tenha realizado um filme falado. Era costume nessa era de advento tecnológico sonorizar os filmes, um comboio que fazia piiii, um carro que fazia póóóó, mas as pessoas não falavam. Murnau depois do sucesso de Aurora, continuou no seio da máquina e preparava-se para fazer o seu primeiro filme falado, Fat City. Mas Murnau era um senhor especial (e não era só por ser homossexual), fazia cinema que envolvia largos movimentos de câmara, vide O último dos homens e os longuíssimos planos sequência em câmara subjectiva. Essas estratégias não se coadunavam com a ainda principiante captação de som, vários problemas surgiram, Murnau zangou-se e decidiu expulsar os senhores do som para longe da sua vista (e do seu platô). O filme ficou mudo e ele cansou-se desses mauzões dos estúdios. Partiu para a selva e filmou Tabu. Morreu num acidente de carro no regresso.

Esse filme era partido em dois, sobre um casal índio que depois de muito felizes se tornam escravos dos colonizadores. Este filme (o moderno) é partido em dois, sobre a infelicidade de um casal de velhinhos que se lembram dos maravilhosos tempos da vida colonial. 

Gomes, como se percebe, tentou brincar com a memória do cinema, do cinema de Murnau. Mas o que interessa é perceber que ele fundamentou esta obra nessa coisa que é o cinema sonoro-mudo por dois motivos. Primeiro, como explicou o produtor Luís Urbano, a captação de som era de facto deficiente, porque a equipa técnica era pouca e o dinheiro também. Segundo, a ausência de diálogo na metade africana do filme, confere uma atmosfera de sonho ao colonialismo, acrescentado pelas cenas ao ralenti, e a música da época. Gomes capitalizou as dificuldades técnicas e produziu uma homenagem ao cinema, exactamente como em O mue querido mês de Agosto, em que a impossibilidade de fazer uma ficção levou à contaminação pelo documentário. Mas o que espanta (e talvez atormente) é o facto de essa memória se traduzir num objecto de cinema de hoje, tão pulsante como o cinema de Apichatpong. Note-se no entanto que a referência ao cineasta tailandês não é em nada casual: este último filme é todo sobre essa coisa dos mortos, que vivendo entre nós não nos atormentam, vide a cena da descrição do sonho, por Laura Soveral, em que o seu marido lhe aparecia como macaco, como também aparecia o filho morto no Tio Bonomee; ou o crocodilo que encarnava o arqueólogo triste, como a vaca da abertura do outro filme que se dirigia para a selva em busca da sua vida anterior. 

Enfim, já vi o filme há tempo demais para ainda me conseguir lembrar de tudo...  

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