7.18.2012

De novo as batatas, sempre as batatas.

Há uma sensação estranha quando se percebe que acabámos de ver um filme de duas horas e meia com pouco mais de 30 planos. Porque de tão complexos que são os movimentos de câmara, sentimos que cada um, por si só, já era um filme; cada um, por si só, permitiria desenvolver longas e prolíficas linhas de pensamento (coisa que o Luís fez no Cinédrio em 4 episódios). A verdade é que não sou dado a tais epopeia (quer por incapacidade, quer por calansice) e proponho abordar apenas um conjunto de excertos que me parecem ser fundamentais para assimilar A Torinói Lo a derradeira obra de Belá Tar: as refeições.

São seis os dias, em todos os dias se estabelece uma rotina (talvez seja esse o grande objectivo de Tarr, o afirmar a volatilidade dos hábitos e a forma como o conforto que retiramos destes é apenas efémero), o acordar, encher os potes de água, ajudar a vestir o pai, alimentar a égua (sim, porque o cavalo é uma mentira, não há cavalo e não há Turim), cozer e comer as batatas, olhar pela janela, olhar o exterior, ouvir o vento e depois dormir à luz de uma candeia a óleo. Tudo isto é repetido, no entanto Tarr raramente repente um enquadramento e é nesse jogo que vale a pena reparar.

-No primeiro dia, à refeição, o pai come sofregamente a sua batata, descasca-a arriscando queimar os dedos e come-a ainda fumegante, não há contracampo da filha, nada, só o homem que no seu estrabismo e com o seu braço paralisado ataca ferozmente aquela parco alimento.
-Segundo dia, desta vez temos a rapariga a comer, a filha, que come calmamente, sem pressas, deixando arrefecer a batata, saboreando-a. De novo não há contracampo, mas ouvimos os sôfregos grunhidos do pai.
- No terceiro dia, temos um enquadramento de perfil, aproveitando a largueza da tela, pai e filha em extremos opostos da mesa (e do enquadramento), estamos de frente para a janela e a cena repete-se, ele come com gosto e ela como um passarinho; de novo as batatas, sempre as batatas.
- Quarto dia, agora a câmara está na outra ponta da mesa, estamos de costas para a janela, tudo igual. De repente, pai e filha, olham para a janela, olham para trás da câmara, posicionamento nada inocente, o que será que esconde o fora de campo? o que será que está a caminho? [primeira mudança de rotina, um grupo de ciganos aparece e interrompe a refeição, ambos deixam as batatas arrefecer]
-No quinto dia não há batatas, nem há refeição há mesa, nem há refeição em lado nenhum. Tentam partir (porque o poço secou) e na viagem não têm tempo para comer. Vão mas voltam, porque não há para onde ir, o vizinho tinha-os avisado, o mundo está a acabar.
- Sexto dia, só há a refeição, não há acordar, nem vestir nem cavalo (ou égua), há só escuridão, um plano lateral dos dois, e batatas cruas. Não sabemos se a câmara está de fronte para a janela ou de costas, porque já não há janela, não há lá fora (nem sequer há luz), tudo acabou, só ficou a refeição, é a única coisa que resta, mas por pouco tempo.

Através da desmontagem da rotina, dia-a-dia, vai-se perdendo um elemento de cada vez, até não haver nada. Eles passavam horas a olhar pela janela, ver o lá fora. O pai come depressa para poder ir mais cedo para o banco em frente à janela e observar a paisagem, observar a natureza. Natureza essa que primeiro está inacessível por causa do vento e depois inexistente por causa da luz. No fim o pai já não come a batata crua porque já não há lá fora, porque já não vale a pena.

2 comentários:

Sam disse...

"Malditas" batatas! :)

Excelente perspectiva!

Cumps cinéfilos.

Nuno Bento disse...

Óptimo texto, Ricardo. Já se passou mais de 1 mês que vi "O Cavalo de Turim" no cinema e o filme ciclicamente ainda me bate. É raro o dia que isso não aconteça. Se isto não é uma demonstração do poder do cinema, não sei o que será.
Os meus 2 cêntimos na altura:
http://escolhamusicaldodia.blogspot.pt/2012/06/mihaly-vig-torinoi-lo.html