3.27.2010

Imagem Escrita, Palavra Filmada - III

deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe e não vai existir. e também inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo, que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil, se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que assim estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender porquê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros. e enquanto mais assim for, quanto menos acreditamos uns nos outros, mais solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entra em crise, porque as mentes se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento. que medo o de voltarmos ao tempo de uma polícia para costumes e convicções. que medo se voltamos a temer os vizinhos e os vizinhos nos puderem entregar por ideias contrárias. que medo se nos entra um outro filha-da-puta no poder, a censurar tudo quanto se diga e a mandar que pensemos como pensa e façamos como diz que faz. que medo de tudo se em tudo o que os homens fazem vai a vontade torpe de ultrapassar o outro, poder mais do que o outro, convencer o outro que fica bem no andar de baixo e depois subir, subir o mais sozinho possível, porque ganhar acompanhado não satisfaz ninguém. estamos a fazer tudo errado agora, sem valores, sem medo da igreja, sem um fascismo que nos regule o voluntarismo. estamos como que sozinhos de maneira errada. mais sozinhos do que nunca, a ver a coisa passar sem sabermos muito bem em quem confiar. e nisto, é verdade, pressupomos que todos são bons homens, mas a cabeça de alguns, senão a de todos, tem de estar a cozinhar muito do esquisito que para aí acontece e se sente. muito do esquisito que nos impede, mais e mais, de acreditar nos homens.

a máquina de fazer espanhóis de valter hugo mãe, edição ALFAGUARA, 1º edição (2010), pág 225-226

P.S.: No dia em que fui ver o novo filme dos irmãos Coen (A Serious Man), estava a mais de meio do livro de valter hugo mãe (do qual já tinha lido o remorso de baltazar serapião e apocalipse dos trabalhadores), quando o filme acabou e apanhei o metro na estação de S. Sebastião, onde os comboios demoram mais, abri o livro e comecei de onde tinha ficado. O que me aparece é nem mais nem menos que o parágrafo acima - 'resumo teórico' do filme. Depois disto achei que pouco mais conseguiria acrescentar, a não ser: achei o filme simpático, não é Buster Keaton (como diz João Lopes), nem é um asco (como afirmava Mourinha); é um pouco desconexo, que quer falar de mais com economia de palavras e isso só calha bem às vezes. [Os Coen são bons é a filmar a morte e a violência, não dilemas teológicos, mas mesmo assim não se espalharam]

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