10.24.2011

O cinema ponguiano

Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores é um filme singular. No cinema de Apichatpong vive como peixe na água, ou melhor como a carpa no lago. Este é, para todos os efeitos, o filme do reconhecimento; e talvez não leve a pontos tão extremados a posição autoral do realizador, mas é, sem qualquer dúvida, um filme maior no cinema mundial e um exercício sobre os jeitos de Weerasethakul.

Os pontos chave do cinema ponguiano (sim, há que inventar-lhe um adjectivo) estão lá, todos; a enunciar: a dualidade; que tem o seu exemplo mais marcado em Blissfully yours com o genérico a cortar o filme em dois (sendo a primeira parte na cidade a segunda na floresta) ou em Syndromes and a Century com as encenações duplas das mesmas cenas (em versão pai e versão mãe). Em Tio Boonmee a dualidade constrói-se, como seria de esperar, com o antes e o depois da morte de Boonmee, isto é, com a transição do campo para a cidade; e de forma mais evidente nesse plano final da duplicação (espelhada) dos personagens. A doença; todos os filmes de Joe (ao que parece, gosta que o chamem assim) absorvem a doença como base da construção da narrativa, quer seja pelo mal de pele em Blissfully, quer seja, para começar, o título de Tropical Maladay, ou todas as cenas hospitalares em Syndromes. Mais uma vez em Tio Boonmee temos um personagem adoentado, o próprio Boonmee que retirado para o campo espera pela morte, acompanhado pela família (física e espiritual ) e pelo enfermeiro. O espaço familiar; de novo as referências atravessam todos os filmes do realizador, em todos há sequências à mesa perturbadas de alguma forma pela chegada de elementos externos ao espaço familiar (num piquenique junto ao rio interrompido(?) pela sogra chata, numa sala abafada das catacumbas bebendo Uísque (à portuguesa) interrompidos(?) por um adolescente sorumbático ou, claro está, a cena da visita do filho-macaco e da irmã fantasma, justamente, interrompendo(?) o jantar). A música; em todas as longas as personagens cantilenam, sendo mais do que óbvio o dentista cantor de Syndromes, o karaoeke de Tio Boonmee ou o dueto de Tropical. E como não podia deixar de ser, a floresta; elemento maior, sem floresta não existia Apichatpong. A floresta é local de desprendimento, veja-se o sexo explícito de Blissfully, ou o desprendimento da vida do Boonmee; mas é também lugar de mistificação, campo do desconhecido (os homens macaco ou a vaca fantasma de Tio Boonmee e Tropical, respectivamente). Em Syndromes, há apenas uma cena 'florestal', logo ao início, um movimento de câmara ao longo de um (longo) corredor de hospital, o realizador está a levar-nos à janela e de lá mostra-nos a floresta ao longe, como que a dizer: neste filme as árvores estão apenas em espírito.

O que me encanta em toda a obra ponguiana é a forma hipnótica como enreda o espectador. E isso faz-se de uma forma aparentemente intuitiva: o balanceamento perfeito entre a duração do plano e o movimento de câmara. Podemos dizer que Joe é um realizador de plano fixo e de larga duração; mas na verdade o que é verdadeiramente extraordinário é perceber que a câmara só é fixa quando não se move (oh! La Palice) e que a duração só é larga quando o é. A título de exemplo tome-se Blissfully Yours (o melhor filme do realizador?) e duas belíssimas sequências: a chegada à floresta, toda filmada com câmara ao ombro e a sesta junto ao rio. Esta última, um plano fixo de vários minutos, uma moça dorme no peito do amante, só isso. E no entanto é um momento visceral, coisa de ficar com o batimento alterado e a respiração descompassada.
Isto tudo, para dizer que o tempo é característica ontológica na obra de Apichatpong Weerasethakul.

P.S.: Desconsiderei The Adventures of the Iron Pussy e Mysterious Object at Noon por serem filmes que, pelas palavras do realizador, estão fora de uma noção de conjunto coerente que vai sendo a obra de Apichatpong. Quanto à curtas, não as considerei pelo simples facto de não as ter visto.

Sem comentários: