10.14.2011

Portugal prescrito

Os probrezinhos fazem bicha nem sempre pacientes às portas das juntas de freguesia e das misericórdias, e já se fala que para finais de Maio se dará uma brilhante festa no campo do Jockey Club a favor dos sinistrados das inundações do Ribatejo, esses infelizes que andam de fundilhos molhados há tantos meses, formou-se a comissão patrocinadora com o que temos de melhor no high-life, senhoras e senhores que são ornamento da nossa melhor sociedade, podemos avaliar pelos nomes, qual deles o mais resplandecente em qualidades morais e bens de qualidade, Mayer Ulrich, Parestrello, Lavradio, Estarreja, Duan e Lorena, Infante da Câmara, Alto Mearim, Mousinho de Albuquerque, Roque de Pinho, Costa Macedo, Pina, Pombal, Seabra e Cunha, muita sorte vão ter os ribatejanos se conseguirem aguentar a fome até Maio. No entanto, os governos, por supremos que sejam, como este, perfeitíssimo, sofrem de males da vista cansada, talvez da muita aplicação ao estudo, da pertinaz vigília e vigilância. É que, vivendo alto, só enxergam bem o que está longe, e não reparam como tantas vezes a salvação se encontra, por assim dizer, ao alcance da mão ou no anúncio do periódico, que é o caso presente, e se este não viram menos desculpa têm, porque até traz desenho, uma senhora deitada, de combinação e alcinhas, entremostrando um magnífico busto que talvez deva alguma coisa às manipulações de Madame Hélène Duroy, não obstante está um pouco pálida a deliciosa criatura, um nadinha clorótica, ainda assim, não tanto que venha a ser fatal a sua doença, tenhamos confiança no médico que está sentado à cabeceira, careca, de bigode e pêra, e que lhe diz, respeitosamente repreensivo, Bem se vê que O não conhece, se O tivesse tomado não estava assim, e estende-lhe a insinuante salvação, um frasco de Bovril. Lesse o governo com atenção suficiente os jornais sobre os quais todas as manhãs, tardes e madrugadas mandou passar zelosos olhares, peneirando outros conselhos e opiniões, e veria quão fácil é resolver o problema da fome portuguesa, tanto a aguda como a crónica, a solução está aqui, no Bovril, um frasco de Bovril a cada português, para as famílias numerosas o garrafão de cinco litros, prato único, alimento universal, pancresto remédio, se o tivéssemos tomado a tempo e horas não estávamos na pele e no osso.

José Saramago in "O Ano da Morte de Ricardo Reis", 1984, Editorial Caminho, Maio de 2002

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