"Tão desafectada que acaba por se confundir com uma indiferença". Como se isso fosse novo. Soderbergh é o cineasta do desapego. Tudo nele é sobre o afastamento dos sentimentos. Daí o fetichismo de Sex, Lies and Videotapes, as drogas em Traffic, a coolness dos Oceans, a cinefilia em The Good German e agora a doença; são tudo artifícios narrativos para nos afastar dos personagens. Aliás, nunca, em nenhum outro filme dele, esse afastamento foi tão marcado. A secura é, talvez agora, mais acentuada, mas sempre foi presença assídua e estruturante.
Escrevi que talvez Soderbegh fosse um realizador com medo dos seus personagens. Aqui, com a epidemia, esse medo torna-se mais evidente, e com razão de ser. Cada personagem é um veiculo para a morte de outros tantos, por isso é melhor não nos aproximar-mos.Ou seja, se existe alguma forma verdadeira de filmar a morte é fugindo dela. A certa altura Godard diz em Histoire(s) du Cinema algo do género: nunca filmar o sofrimento de perto. Soderbergh foge da dor, dos personagens, dos seus sentimentos. Filma tudo pela rama por ser demasiado educado para infligir dor no espectador. Soderbergh é um cineasta que tem uma moral. Daí que não haja sustos neste filme catástrofe e a secura seja constante.
Pois veja-se a papel de Gwyneth Paltrow que morre ao fim de dez minutos de filme. Faz lembrar alguma coisa? Janet Leigh em Psico? Hitchcock, esse homem do cirurgicamente construido, primo afastado de Soderbergh. Mas se o senhor Alfred matava Leigh pelo parzer de matar um estrela no início do filme, o senhor Steven mata-a por piedade, porque já lhe conhece o destino e por isso não adianta prolongar-lhe o sofrimento. De forma idêntica mata a modelo russa, o empregado chinês ou o filho do casal, logo no início.
No enanto aquilo que deixa uma marca mais profunda é a descontrução dos afectos; que se concretiza nesta cena brilhante: Kate Winslet sintetiza uma possível vacina, injecta-se, dirige-se para o hospital, puxa uma cortina e encontra um homem idoso e doente. Seu pai. Mas porque vai ela visitar o pai? avisar da descoberta? despedir-se? não. Ela vai ter com o pai para o beijar. Porquê? porque precisa de se certificar que a a vacina funciona e estando o pai infectado, esse será um forma de comprovar a sua imunidade. Portanto o afecto, ou pretenso afecto que se estabelece, é coisa médica, científica, cartesiana. Afecto infecto portanto. [nota-se ainda esta desconstrução na relação da filha de Damon e o namorado, a forma como o beijo é impedido a tiro de caçadeira ou a entrada em casa só é validade com a pulseira da imunidade]
E porque são trágicas as histórias de uma epidemia, Soderbergh não se apega a ninguém em particular. Salta de uns para os outros, não existe protagonista. Porque isso seria contruir uma ligação entre o sofrimento e o espectador. Além disso, sempre que entramos numa cidade dão-nos o número de habitantes. Números, números. Sim, porque os números são a derradeira forma de desapego, das pessoas, mas mais que isso do palpável.
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